O caminho de uma pesquisadora pelos sabores da História

A curiosidade de Ana Luíza M. S. Andrade a levou a percorrer milhares de edições de jornais para desvendar como os hábitos alimentares e a urbanização moldaram a São Paulo dos anos 1920

PERFIL CIENTISTAS

Aline Carrijo

3/17/20253 min read

Como a gente se acostuma a comer o que comemos? Como a gente se habitua a coisas tão próximas da nossa realidade, do nosso dia a dia?

Essas eram algumas das curiosidades de Ana Luíza M. S. Andrade desde quando fazia faculdade de História, na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), em Florianópolis.

Apesar de ser um hábito “absolutamente banal”, nas palavras da historiadora, comer marca diariamente a nossa vida e, ao contrário do que pode parecer, não é tão natural assim.

Exatamente por isso, é tão importante desnaturalizar o ato de comer, diz Ana:

“Desfazer, desmontar o que é normal, a normalidade, e entender o processo histórico que nos trouxe até aqui. O que a gente consome hoje, e como a gente consome, é carregado de uma historicidade”.

A curiosidade de Ana sobre os hábitos alimentares está em sintonia com a linha de pesquisa conhecida como História do Cotidiano.

“A história do cotidiano - uma história que é difícil enxergar de maneira tão óbvia - dá uma dimensão humana da história, do que as pessoas estavam vivendo, do que as pessoas comuns estavam fazendo. Nos grandes fatos históricos e políticos se perde um pouco dessa humanidade comum. E o cotidiano traz isso”.

E é na interseção entre as transformações do paladar e as transformações urbanas que Ana desenvolveu sua pesquisa de Doutorado, na Universidade de São Paulo (USP).

Em sua tese, Rubricas do cotidiano, defendida em 2017, ela investigou as mudanças no dia a dia daqueles que viviam na capital paulista durante a década de 1920 a partir de crônicas escritas no jornal O Estado de S. Paulo.

No entanto, o caminho da pesquisa e a definição das fontes raramente são lineares.Para definir as crônicas como objeto principal de sua análise, Ana precisou folhear bastante as páginas do jornal.

Hoje é comum, para quem pesquisa em jornais e revistas, fazer a busca por termos específicos, já que a maioria das publicações está digitalizada. Essa busca digital, apesar de facilitar a encontrar materiais particulares, pode prejudicar no entendimento de um contexto mais amplo.

A Ana, por exemplo, precisava encontrar materiais relativos aos lugares em que as pessoas iam para comer na década de 1920, os chamados espaços de sociabilidade. No entanto, os termos utilizados na época não são os mesmos que usamos agora:

“Eu colocava restaurante e confeitaria, por exemplo. Mas eu estava perdendo a rotisseria, eu estava perdendo a leiteria, eu estava perdendo a bomboniere. Eu estava perdendo vários outros espaços de sociabilidade do comer, porque eu estava usando a linguagem atual para fazer uma busca. E aí eu não ia chegar em muitos resultados”.

Outro desafio era pesquisar “café” em um jornal paulista da década de 1920, pois, na época, a política, a economia e a cultura do estado giravam em torno deste produto. Também não seria uma busca bem sucedida.

Foi, então, folheando o jornal, página a página, que ela pôde perceber esses detalhes, assim como a própria estrutura do jornal. O que cada página trazia, quais eram os destaques e onde ela encontrava coisas especificamente sobre a cidade de São Paulo, que era o seu foco.

Descobriu que eram as últimas páginas que tinham as matérias que interessavam a sua pesquisa e começou a focar nelas. A crônica “Coisas da cidade”, escrita por Plínio Barreto, lhe chamou particular atenção, por sua periodicidade e pelo conteúdo, que relatava as transformações urbanas da capital diariamente.

Elas ofereciam um retrato sobre os novos espaços de comer que surgiam na cidade e como eles influenciavam os hábitos de consumo e o comportamento social dos paulistanos. Além disso, a transformação desses ambientes refletia a urbanização da cidade e as adaptações culturais que acompanharam esse processo, revelando valores da elite à época.

Foram mais de 1000 edições do jornal Estado de S. Paulo, tabuladas, categorizadas e analisadas por Ana. Um dos grandes desafios para historiadora.

Após o doutorado, ela aprofundou ainda mais suas descobertas ao explorar o arquivo pessoal de Plínio Barreto. Em seu pós-doutorado, investigou a vida e a obra desse jornalista, que se tornou uma espécie de cronista não oficial da São Paulo dos anos 1920.