Quando não é loucura fechar um hospital

PSICOLOGIADESTAQUE

Texto de Aline Carrijo, baseado na tese "O fechamento de um hospital psiquiátrico como acontecimento", de Leda Gimbo

O fechamento de um hospital. Mas não de um hospital qualquer. A Casa de Saúde Santa Teresa, no Cariri (CE), era um manicômio. O encerramento de suas atividades, em 2016, foi interpretado por Leda Gimbo como um acontecimento. Mas não um acontecimento qualquer.

Receituário de Lima Barreto de quando esteve internado na Colônia Juliano Moreira.

Para o filósofo francês, Gilles Deleuze, o acontecimento é um evento que produz uma marca no tempo e serve como um “disparador para analisar rupturas”. Seguindo esse entendimento, a psicóloga e pesquisadora Leda Gimbo investiga o fechamento da Casa de Saúde Santa Teresa, no Ceará, para compreender o que continuou e o que foi interrompido no que diz respeito ao lugar que a loucura ocupa nas cidades brasileiras. Afinal:

  • Qual a nossa relação com a loucura?

  • Como ela é vista e vivida no dia a dia da nossa sociedade?

  • O que consideramos loucura e quem são os considerados loucos?

Reflexões como essas perpassam toda a tese O fechamento de um hospital psiquiátrico como acontecimento: desdobramentos da Reforma Psiquiátrica, produzida pela pesquisadora.

A partir do fechamento do hospital e por meio do chamado “método cartográfico”, a psicóloga realizou um verdadeiro mapa – ou um mosaico – sobre o que significou a Reforma Psiquiátrica no Brasil.

A metodologia da cartografia depende do caminho traçado pela pesquisadora em campo – não se baseia, portanto, em uma técnica padrão pré-determinada. É fundamental explicitar os passos escolhidos durante o processo de produção do conhecimento.

E assim Leda Gimbo faz. Em seu percurso, nos leva junto para uma viagem pela história dos principais manicômios do Brasil, da legislação psiquiátrica e das modificações e continuidades em suas práticas até 2021 (ano de publicação da tese).

O Fechamento de um Manicômio

A Casa de Saúde de Santa Tereza, no Ceará, foi desativada em 2016, há pouco mais de oito anos, em um contexto de retrocesso político. Não houve preparação da Rede de Apoio Psicológico no processo de fechamento do hospital e os serviços de Saúde Mental não foram ampliados. Por outro lado, na mesma região onde antes havia um manicômio, notou-se um grande aumento das Comunidades Terapêuticas, que vão contra premissas do acompanhamento em liberdade.

Ou seja, apesar do fechamento de vários manicômios no Brasil, manteve-se (pelo menos até 2021, quando foi finalizada a tese), uma “lógica violenta de exclusão”, mas de maneira atualizada.

Usuários de álcool e outras drogas, por exemplo, especialmente os mais vulneráveis economicamente, se tornam os novos representantes da loucura e passaram a ser encarados como um problema de ordem privada, “lançados numa espécie de limbo social”.

Acirrou-se um descaso do poder público pelas vidas marginais, que “continuam sendo invisibilizadas, aniquiladas e passíveis de esquecimentos”.

Contra esse apagamento, o trabalho realizado por Leda Gimbo tem importância fundamental. Seus registros atentos e sua pesquisa aprofundada, contribuem para o não esquecimento dessa história. “Relembrar para que cada desconstrução seja uma promessa”.

Colônia Juliano Moreira em ruínas (2019). Fotos: Leda Gimbo.

Demolição da Casa de Saúde Santa Tereza (Fotos de 2019, enquanto a desativação foi feita em 2016). Fotos: Leda Gimbo.

Vale destacar que, além de pesquisadora, Leda trabalhou na Casa de Saúde de Santa Tereza e promoveu intervenções na região do hospital, como forma de rememorar tantas vidas que por ali passaram.

A Luta Antimanicomial, entre avanços e retrocessos

No Brasil, a luta antimanicomial, contra essas atitudes impositivas e violentas, ganha força a partir da década de 1980.

A reforma psiquiátrica no país foi sendo implementada, paulatinamente, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sustentado pela Constituição Federal de 1988. Em contraposição à forma piramidal e hierarquizada, propunha-se um esquema circular e descentralizado, com práticas de cuidado regionalizados e integrados à sociedade. Parte-se da prevenção e promoção à saúde como prioridade, a chamada atenção primária.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) foram ferramentas fundamentais nesse processo. Situados dentro dos territórios da cidade, promovem um cuidado em liberdade, “a céu aberto”. Junto a eles, os Centros de Convivência e as Residências Terapêuticas também foram fundamentais para permitir o fechamento dos grandes manicômios e a redução de leitos hospitalares psiquiátricos. Foram estruturas que funcionaram como um suporte substitutivo para possibilitar a desospitalização.

No entanto, a partir da análise das portarias e resoluções aprovadas desde 1988, Leda Gimbo observou que a Política Nacional de Saúde Mental sofreu um golpe profundo depois de 2016, ano do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Situação que se agravou ainda mais após a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018 e a pandemia de COVID-19.

Houve, dentre outros processos, o encerramento de programas para pessoas em situação de rua, cortes de investimentos em atenção primária e secundária, reinvestimento em leitos hospitalares e também em clínicas privadas – como as chamadas Comunidades Terapêuticas, de caráter “religioso, punitivista e proibicionista”.

Ou seja, há um retorno das práticas manicomiais que haviam sido combatidas, mas de maneira atualizada:

“dissolvidas no tecido social, em microestruturas, em células menores”. Assim, “O manicômio mental persiste, sua forma ideológica se mantém e as práticas de segregação são atualizadas na sociedade de controle”.

Diante do retrocesso, Leda Gimbo reafirma a necessidade de visitar as ruínas, como forma de recuperação da memória: “contra os imperativos sociais que incentivam o esquecimento e a substituição veloz, talvez seja necessário revisitar e acompanhar a desconstrução desses espaços”.

Cartografando

Além da história da Casa de Saúde Santa Teresa, no Ceará, a pesquisadora trouxe elementos sobre outros dois manicômios que possuíam semelhança estrutural com ela, devido à relevância que tinham no local em que estavam e no imaginário social. Foram eles: o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, e a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.

No ato de cartografar, Gimbo foi em busca do que restava desses espaços – das ruínas, “passos do apagamento” – e do que suas transformações eram capazes de dizer. Para tanto, utilizou a fotografia documental como método narrativo. Uma maneira de registrar o espaço no tempo, assim como a “impressão do olhar de quem pesquisa sobre o fenômeno pesquisado”.

O Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, inaugurado em 1903, foi o maior hospital psiquiátrico do país e serviu como lugar para “homossexuais, militantes políticos, mães, solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados”.

A cidade de Barbacena, junto a Juiz de Fora e Belo Horizonte, de onde provinham os trens com os “pacientes”, ficaram conhecidas como “Corredor da loucura”. Estima-se que houve mais de 60 mil mortes dentro do manicômio.

Sua história, que já foi comparada aos campos de concentração, é marcada por políticas de extermínio, e foi registrada no documentário “Em nome da razão”, de 1979. Em 1996, o lugar foi desativado, e criou-se o Museu da Loucura.

Já a Colônia Juliano Moreira ficava na região de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Ela abrigou mais de 3 mil pessoas e existia, com esse nome, desde 1935 (mas foi inaugurada em 1924, com outra denominação). Teve integrantes ilustres entre seus moradores, como Lima Barreto, que passou meses internado e fez relatos sobre os dias por lá:

“Vive-se aqui pensando na hora das refeições. Acaba-se o café, logo se anseia pelo almoço; mal se vai deste, cogita-se imediatamente o café com pão; à uma hora, volta-se e, no mesmo instante, se nos apresenta a imagem do jantar às quatro horas. Daí até dormir, são as piores horas de passar”.

Após seu fechamento, o que foi a Colônia se tornou um bairro, com “dimensões geográficas imensas, atravessado pelas ruínas e reapropriações da antiga estrutura manicomial”. A região possui elementos das Redes de Atendimento Psicossocial (RAPS), no entanto, também houve aumento no número de Comunidades Terapêuticas no local.

Pensando a Loucura

Durante muito tempo, os manicômios foram predominantes no Brasil. Eles estavam em sintonia com ideias higienistas e preconceituosas, que queriam as cidades limpas e funcionais. O objetivo? A prosperidade econômica.

A Casa de Saúde Santa Teresa em Cariri, no Ceará, por exemplo, foi construída no ano de 1969 por uma equipe médica em um contexto claro de expansão do desenvolvimento capitalista. Foi nessa época que houve a inauguração da estrada de ferro na região.

Com o aumento do comércio, cresceu também demandas sociais, como a organização das cidades. Implicitamente, normas foram estabelecidas para garantir o funcionamento da vida produtiva e econômica.

Em sintonia com esses parâmetros, o saber psiquiátrico da época ancorava-se, fundamentalmente, na ideia de isolamento e de “internamento massivo” de uma população socialmente indesejada.

Ou seja, as megaestruturas manicomiais do Brasil seguiam esse imperativo de ordenamento social, onde corpos considerados desviantes, ou seja, que não contribuíam economicamente, eram colocados entre muros:

“os manicômios são erguidos para dar conta do rigor disciplinar sobre os corpos e garantir o ordenamento das cidades, oferecendo destino seguro, bem camuflado pela psiquiatria, para as formas de vida desviantes à norma, inadequadas à geração de lucro renda”.

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Texto produzido por Aline Carrijo, baseado integralmente na tese de Leda Mendes Pinheiro Gimbo, “O fechamento de um hospital psiquiátrico como acontecimento: desdobramentos da Reforma Psiquiátrica”.

Revisão de conteúdo: Leda Gimbo

Edição: Aline Scarso

(Todas as citações foram retiradas diretamente do texto da tese. Os números das páginas e outras informações não foram indicados para garantir a fluidez do texto. As referências completas estão devidamente dispostas no texto da tese).

19/09/2024

Leda Mendes Gimbo é mãe, cearense, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.

Atualmente é professora e pesquisadora na Universidade Federal de Goiás - UFG, coordenadora do Grupo de Pesquisas e Estudos em Gestalt-terapia da UFG, e atua em pesquisas relacionadas às relações de poder, gênero, violências e possibilidades interventivas.

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