Debate: “A cabeça está atrasada em relação à tecnologia?”
ATUALIDADES
Santos Dumont, inventor do avião, se matou depois de ver sua grande criação sendo utilizada para a guerra. A sua história nos faz refletir: para onde está indo a tecnologia? O seu uso realmente significa progresso?
Santos Dumont não patenteou a sua invenção com o objetivo de garantir o domínio público de um meio de transporte com potencial tão revolucionário. No entanto, após seu uso para matar em bombardeios durante a Revolução Constitucionalista de 1932, passou a se sentir constantemente culpado, a ponto de tirar a própria vida.
A energia nuclear é outro exemplo de tecnologia, que, apesar de seus usos positivos posteriores, teve como primeiro grande fim a construção da bomba atômica, que matou milhares de japoneses no fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Outro exemplo ainda mais atual é a internet, cujos benefícios extraordinários são inegáveis, mas que se tornou um veículo de propagação do ódio e de polarização social.
Os exemplos são do filósofo e ex-Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro. Afinal, a psique humana está atrasada em relação aos avanços tecnológicos, já que, muitas vezes, não se consegue utilizá-los para o bem comum?
Janine coordenou a jornada de discussões intitulada A contribuição das Ciências Humanas e das Humanidades para o desenvolvimento do Brasil. As mesas de debate aconteceram em março de 2024 como parte das conferências preparatórias para a 5ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia.
Nesta mesa, que dá título ao texto, Janine debateu, junto ao psicanalista e professor Christian Dunker e à professora Tatiana Roque, a relação entre o desenvolvimento tecnológico e científico e o desenvolvimento social e humano.
Se a vida moderna é inteiramente marcada pela ciência e tecnologia, como garantir que avanços notáveis não se tornem destrutivos? Como humanizá-los? Quais valores precisamos colocar nesse desenvolvimento? A psique humana estaria mesmo atrasada em relação aos desenvolvimentos tecnológicos? É a partir das Ciências Humanas e das Humanidades que os participantes procuram refletir sobre essas questões.
Progresso? - por Tatiana Roque
Para Tatiana Roque, antes de qualquer coisa, é preciso entender o sentido do nosso momento histórico, pois vivemos um tempo sem precedentes. Diferentemente de outras épocas, não se crê mais no progresso, como uma ideia compartilhada de que a humanidade caminha para um futuro sempre melhor devido aos avanços da ciência e da tecnologia.
Temos a sensação de que existe uma desconexão entre o desenvolvimento técnico e a nossa capacidade de lidar com ele socialmente, de refletir sobre suas implicâncias e torná-lo algo positivo para a convivência humana.
A crença no progresso já havia sido abalada, principalmente, depois da 2ª Guerra Mundial, exatamente após a bomba atômica. Nesse momento, questionou-se o avanço da tecnologia e do poder da ciência como sinônimo de um futuro melhor. Houve, então, fortes investimentos políticos e econômicos para recuperar a confiança na ideia de progresso.
O movimento incluiu a corrida espacial, as tecnologias que foram revertidas para o Estado de Bem-Estar Social (que, mesmo que não fosse realidade em todo o mundo, se um tornou modelo a ser alcançado) e, ainda, as diversas instituições globais, como a Organização Mundial da Saúde. Assim, o arcabouço científico servia de base para os tomadores de decisões.
As Instituições conseguiram manter a ideia positiva de progresso até a crise do Estado de Bem-Estar Social, por volta da década de 1980. Desde então, não foi mais possível criar a força institucional do período anterior.
Vivemos em um momento em que as instituições e a política ainda não foram capazes de tratar as consequências dessas novas tecnologias. Discussões relativas à Inteligência Artificial, por exemplo, estão sendo comandadas mais pelas empresas do que pelos governos.
Isso mostra o quanto estamos distantes de conseguir o avanço institucional e político global necessário para tratar os desenvolvimentos tecnológicos e científicos do ponto de vista da sociedade, ou seja, de como isso poderia se reverter para o bem comum.
De acordo com Roque, é preciso entender que, ao longo da história, a ciência serviu de mediação para decisões políticas e que, hoje, é justamente esse poder de mediação que está sob ataque.
O negacionismo não age sob todas as ciências, mas, sim, sob aquelas que têm impactos políticos imediatos, como, por exemplo, nas políticas de saúde, durante a pandemia em relação às vacinas, ou nas políticas econômicas, no que diz respeito às mudanças climáticas.
Hoje há uma disputa nesse campo dos especialistas, que visa atrasar e se contrapor às modificações políticas necessárias para lidar com esse cenário, que implicam, necessariamente, regulações - na maioria dos casos, mal vistas pelas grandes empresas dominantes.
Novos modelos de subjetividade - por Christian Dunker
O psicanalista e professor, Christian Dunker, analisa como a linguagem digital foi responsável pela formação de uma nova subjetividade. Segundo ele, estamos em um momento em que estão sendo formadas novas regras: algoritmos opacos decidem situações de consumo, de aceleração de afetos e sentimentos sem que a gente tenha acesso às regras do jogo, algo sem precedentes na história.
Outras mudanças tecnológicas também alteraram os modelos de subjetividade no curso da humanidade, como a invenção do livro, do relógio, da máquina à vapor e do audiovisual (rádio, televisão).
Mas é incomparável a quantidade de acumulação de conhecimento e de poder que as grandes empresas de tecnologia, as chamadas big thecs, possuem hoje em dia quando comparado com as outras tecnologias que antecederam sua chegada.
A linguagem digital impacta de diferentes formas a subjetividade. Uma das principais é a reorganização do saber, como, por exemplo, a compreensão sobre o que é ciência.
A partir da internet, usuários começaram a se aproximar do conhecimento científico. Qualquer pessoa pode ter acesso às publicações científicas, que, há poucos anos, eram acessíveis apenas para pesquisadores que estivessem dentro das universidades.
Essa aproximação com a ciência trouxe efeitos positivos, de esclarecimento e de ampliação de consciência. Ao mesmo tempo, trouxe o entendimento de que a ciência não é um consenso ou uma autoridade vertical.
Nessa nova situação, ao perceber que a ciência envolve debates e construções de paradigmas, surgiram questionamentos sobre a possibilidade de inserção de qualquer crença nesse processo.
Se, por um lado, essa ideia vem atrelada a um desejado espírito democrático de inclusão, por outro, também se choca violentamente com regras elementares do debate científico.
No campo social, há também um atraso jurídico, que não consegue regular de maneira consistente esse novo meio que prolifera práticas altamente nocivas do ponto de vista psíquico. O discurso de ódio, por exemplo, é prejudicial para quem sofre e para quem realiza.
Dunker afirma que nós estamos num universo de linguagem em que a estrutura dialogal está sendo corroída. O diálogo e o debate, de confrontação epistêmica, não acontece devido à aceleração, marca da linguagem digital. Não é possível argumentar, do ponto de vista da consistência científica, da explanação e da construção de argumentos, em um movimento de aceleração. Ou seja, o problema que encontramos na Ciência é um problema geral.
Por fim, na linguagem digital, prospera a chamada autoridade horizontal, que coloca em grande desvantagem os saberes institucionais, as universidades, o direito e todos aqueles que são os mediadores de conflito.
Nessa linguagem, se não há um reconhecimento do público, não há autoridade real. Grandes instituições ou veículos tradicionais de comunicação, por exemplo, não conseguem criar páginas de internet atraentes, porque nelas vigora uma autoridade vertical.
Para ver a palestra completa, acesse:
https://www.youtube.com/watch?v=gLB_N02CYGA&list=PLVigrCJ_g6LcsHLlQIyBz7fh8fuTYSRhq
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Texto produzido por Aline Carrijo, baseado integralmente na palestra "A cabeça está atrasada em relação à tecnologia?", proferida durante a jornada "A contribuição das Ciências Humanas e das Humanidades para o desenvolvimento do Brasil", realizada pela SBPC.
Edição: Aline Scarso
05/09/2024
Renato Janine Ribeiro é filósofo e professor na disciplina de Ética e Filosofia Política na USP.
Christian Dunker é psicanalista e possui mestrado e doutorado na área de Psicologia Experimental. É professor no Instituto de Psicologia da USP.
Tatiana Marins Roque é graduada em matemática e doutora na área de História e Filosofia das Ciências. É professora no Instituto de Matemática da UFRJ.
*Informações retiradas do Currículo Lattes de cada pesquisador.